Bom dia! :)
Hoje estou grata por poder partilhar a escrita com uma pessoa super talentosa de que já vos falei: a Letícia Brito, autora do livro "nos braços do vagabundo". A Letícia é uma querida e foi um prazer partilhar este "completas-me" com ela. Espero que gostem!
«Foram quarenta comprimidos, exatamente, quarenta. Embora, eu só me recorde dos vinte primeiros. Depois disso, luzes, muitas luzes colocadas em mim, os meus olhos inchados pelas lágrimas, a visão turva. Médicos. Não sei o número exato, mas creio que eram bastantes, estudavam-me como se eu fosse uma raridade, mas eu sei, no profundo de mim, que já assistiram a outras cenas como estas; jovens a tentarem estrangular a vida na flor da idade. Macas. O barulho ensurdecedor de macas a passearem de uma ponta à outra da ala psiquiátrica do hospital. Vozes. Muitas vozes. Algumas que me segredavam ao ouvido que tudo ficaria bem e outras que me gritavam que eu era um caso perdido. Sombras. Muitas sombras. Deambulavam perdidas ou talvez perdida estivesse eu. Rodeavam-me e convidavam-me a seguir com elas. Debati-me durante horas, com um tubo que uma enfermeira rabugenta me enfiou do nariz ao estômago, que me arranhava a garganta, me impedia de falar e consequentemente de respirar. E as sombras estavam lá, tentavam dar-me a mão, sugavam-me as poucas forças que me restavam e ela chegou; um manto negro sobre os ombros, tombava-lhe ao longo do corpo magro e cansado, os olhos negros, tão negros como a noite mais triste que o inverno presenciou no meu peito, os olhos brilhavam, orbitavam, clamavam. Só lhe escutava a voz e via o brilho intenso que emanava dos seus olhos negros, mas a cara, não a vi, talvez fosse o excesso de medicação, talvez fosse efeito do carvão ativado no meu corpo, talvez fosse o sono a pesar, ou qualquer outra coisa. Ela segredou-me ao ouvido: «está na hora», oh se estava, regozijei-me no leito da minha quase-morte por finalmente ter chegado a hora, então por breves momentos, estendi-lhe a mão e caí num sono profundo, não sei se ela me levou, não sei estou a sonhar, não sei se este é o inferno ou o céu. Ouço gritos ao meu redor. Ouço a minha mãe em prantos. Ouço tudo. E não sinto mais nada. Ainda não sei onde estou. Eu queria tanto que esta hora chegasse, mas enquanto balanço nesta linha ténue entre a vida e a morte, eu queria tanto pedir-te perdão.»
Eu queria realmente pedir-te perdão, mas não sei se ainda vou a tempo… Não sei se vou a tempo de dizer que te amo, que toda a infantilidade que tive foi para te proteger, para não te magoar, para te dizer sem palavras que mereces melhor que eu, melhor que alguém que ao contrário de desejar viver a teu lado, deseja a morte… mas tudo isso foi em vão.
Se eu pudesse voltar atrás no tempo, se eu pudesse ver a vida com outros olhos, agora que a morte quase me toma e eu revejo o que vivi tudo num piscar de olhos, pedir-te-ia para ficares, para me aturares, mesmo quando eu não me entendia. Pedir-te-ia para agarrares nas minhas mãos e me amares com todos os meus defeitos e eu sei, que foi tudo isso que tu fizeste, foi por tudo isso que lutaste e eu deixei-te preso a mim enquanto te soltava e te assaltava com as minhas ideias malucas, disse para tu partires quando eu mesmo queria que ficasses.
Sou ingrata não sou? Burra também, por ter querido ficar sozinha, fui eu que quis, fui eu que nos coloquei nesta situação… Eu só queria sentir a tua mão, poder renascer de novo.
Se eu pudesse sair deste primeiro término, deste pedaço pequeno de morte, eu tratar-me-ia e trataria também de te pedir perdão, de acreditar que a vida é uma bênção e agarraria a tua mão, ouviria contigo aquela música que toca apenas para nós dois…
Mesmo neste instante consigo cantá-la… Neste instante consigo ouvi-la, consigo ouvir-te a cantá-la e pedacinhos de mim florescem, acreditam que a luz que vejo agora não pertence à minha partida, abro os olhos e vejo de novo o mundo e tu dás-me a mão, estás aí, desse lado, do meu lado, a implorar-me que volte para os teus braços, não é um sonho, estou viva, posso-te abraçar, o amor é um milagre, o amor salvou-me, o amor irá salvar-me para sempre.
Agora posso pedir-te perdão, a ti e à vida. E agradecer, ser grata.