[Ficção] À minha sorte
Chorei durante muitos anos. Chorei até as minhas lágrimas secarem, chorei até mesmo quando não sabia o que era chorar, porém aliviava.
Hoje posso dar voz à tua ausência perpetuada na minha vida, agora tenho maturidade suficiente para dizer-te que mãe que é mãe não abandona, mãe que é mãe não faz o que tu fizeste.
Abandonaste-me naquela esquina, à mercê do tempo e da sorte, tinha dois anos, como podia eu sobreviver? Consigo sentir o coração pequeno e pesado desse dia, achas que eu não sentia? Nem a um animal isso se faz... quanto mais a uma criança!
Fui ali posto à minha sorte, à minha valentia natural, porque nada sabia fazer a não ser ficar ali. É preciso ter muita falta de amor ou muita fé para acreditar que um bebé ali no chão pudesse ter um futuro melhor do que com a própria mãe.
Não sei se foi algum Deus que cuidou de mim, o certo é que conheci um anjo, uma verdadeira mãe, porque «mãe é quem cuida». Apareceu quando partiste, surgiu na minha vida e fez com que nunca desistisse dos meus sonhos e educou-me tão bem, sou tão feliz, que conhecer-te não é de todo um sonho para mim.
Podes acreditar que escrevo para me libertar apenas, não guardo rancor, pois não me dizes nada. Simplesmente me puseste no mundo. Na verdade, foi ela quem me deu vida, porque vida é uma sucessão de etapas (onde tu nunca estiveste presente) e não apenas um nascimento.
Podes ter todas as razões do mundo, da mais verdadeiras às mais cruéis, mas a minha paz interior permite-me dizer-te que não quero saber, que esqueço tudo isso.
Vivo em paz hoje, hoje já não dói, apenas sinto aquela dor no peito do miúdo da rua, nada mais.
Aprendi que sou filho de quem me dá amor.
Talvez um dia os nossos caminhos se cruzem, talvez até já nos tenhamos cruzado na rua.
É exatamente isso, somos meros desconhecidos, cada um na sua vida, abandonados desse amor que nunca existiu, bem longe, um do outro.