Bom dia, queridos sorrisos. Hoje tenho um prazer imenso de apresentar o "completas-me" com uma pessoa que admiro muito, não só pela sua escrita, mas como pessoa. Adoro a Sofia e vocês também vão adorar, basta acederem à sua página: Sofia Alves Cardoso.
O nosso texto, feito a duas mãos, foi mesmo desafiante, espero que gostem:
"Pela enésima vez, relato a minha história. Dissimulo que a chaga não dói e que sou a mais forte das mulheres. O doutor sabe. É um homem de estudos, não obstante eu não confiar em homens há já muito tempo, mas o doutor sabe do que precisa e se eu tiver de rasgar o meu peito e dissolver a minha essência, fá-lo-ei. É assim que vocês fazem as coisas, não é? Reavivando memórias que gostaríamos de manter trancadas a sete chaves. Mas é o seu emprego doutor, eu entendo isso. Não se culpe. Por muitos anos fui uma mulher tola. Mas o meu tempo não é o do doutor. O senhor é uma pessoa formada, com estudos, e conhecedor de leis. Eu não era, nem sou, uma pessoa de muitos conhecimentos e a minha vida foi voltada para a obediência. Eu não era mais que um cãozinho adestrado. Emília, vai ali. Emília, não faças isso. Emília, vais apanhar uma tareia se não fizeres aquilo. O que acha, doutor? Não tenho razão? A questão é o hábito. Novamente, tal como um cãozinho adestrado a minha vida era uma rotina de obediência cega e muda. Porque, naquele tempo doutor, o conhecimento era uma arma mortífera e só os homens tinham acesso, mas isso o senhor sabe. E eu lia muito, na calada da noite, depois do meu pai ter feito o servicinho dele comigo e com as minhas irmãs. E sabia que tudo estava tão errado… A minha irmã mais velha morreu quando eu tinha catorze anos. Ela tinha dezanove. Arranjou um namoradito que o meu pai tratou de assassinar na noite de 13 de Maio, porque, dizia ele, que nós éramos dele. A minha irmã foi enterrada no dia 15 de Maio desse mesmo ano. Juntamente com a sua infância roubada. E eu e a minha irmã Casimira vivemos com a sua fúria mais uns quantos anos até que decidimos contar o que se passava. Doutor, você sabe que naquele tempo não tínhamos o mesmo conhecimento como agora e, por isso, decidimos que na confissão iríamos relatar o que se tinha sucedido. Mas sabe o que recebemos? Uma alta gargalhada que ecoou em toda a igreja. Era impossível que o nosso pai, um devoto cristão que pagava os seus deveres atempadamente, fosse capaz de tal, acusando-nos ainda de almas tolas e devassas cujo perdão deveria ser solicitado junto do Altíssimo. Diga-me, doutor, onde reina a hipocrisia?"
O meu pai, poderoso homem de simpatia, renegado aparentemente aos desígnios de Deus, desde a morte da nossa mãe, não passou de um completo monstro que matei com as minhas próprias mãos e embora tenha sido em legítima defesa todo a minha alma se remói e se mata desde esse fim de tarde de sol, em que mais uma vez e sem pedir autorização, o meu corpo foi usado e penetrado, com as suas mãos sujas, pela mesma carne e esperma que me fizera nascer, sinceramente preferia nem ter existido. Para não se ser nada, para que é que vale a pena existir?
Fomos mulheres e nem mulheres fomos, a minha irmã mais velha morreu com um filho no ventre, um filho seu, um irmão nosso... Diga-me, olhe-me nos olhos, veja a sua transparência, o seu vazio, o nada que sou. O que ganhava eu, que sempre amei o meu pai além de todo o ódio, vir dizer em praça pública que ele era o estrume da nossa existência?
Não há nada mais doloroso do que viver e não se ser nada. E creio que dentro do meu desespero por não nada ser, eu consegui ser o suficiente, amar-me o suficiente, para acabar primeiro com o meu pai do que comigo.
Agora que posso confiar no doutor. Agora que contei mais uma vez a minha história. Depois de 25 anos a viver na miséria, a ser um pedaço de carne morta ao serviço promíscuo do meu progenitor, eu quero partir, quero ter a força de seguir em frente, de começar se possível uma nova vida. Sei que será difícil nestes meses em que não me posso ausentar do país, mas onde fui todos estes anos? O que vivi? Nada, existi, por isso viver será um começo, enquanto suspiro e sinto o vento no meu rosto. Amanhã virá, e eu acredito que será melhor. O corpo vai demoradamente aos poucos abandonando a dor e nascerá o sorriso que nunca conheci.
Acredita em mim, doutor?
Photo by Teree in we heart it